Às vezes Fernanda, às vezes Cecília. Foi como me vi ao ler o livro Pelo amor da Mãe do Guarda - Minha história com Cecília, obra literária de estreia da autora Gizele Marques.
Para quem ainda não leu a obra, deve ser totalmente ilegível a ideia desses dois nomes soltos. Fernanda. Cecília. Mas posso lhe dizer que , assim como eu, você já esteve calçando os sapatos dessas duas mulheres pelo menos alguma vez na vida. De formas diferentes, em situações diversas, mas já esteve no mesmo lugar de ajudar e ser ajudado. De amar e ser amado.
Pois bem, não estou aqui para dar spoiler da obra, mas o que posso dizer é que a leitura dessa história de amor, não romântica, foi uma experiência indizível para essa que vos escreve.
A forma com que a autora consegue transitar pela natureza dos afetos humanos, pela tênue linha entre a justiça e vingança, o descaso com o que nos é alheio e a desconfiança da bondade “gratuita”, é de uma proximidade que nos atrai e nos prende à leitura.
Por ser uma história baseada em fatos, e por ser escrita de maneira tão direta e contextualizada na vivência de muitos cidadãos brasileiros, não é de se surpreender que durante a leitura do texto a gente se pegue pensando “ Eu conheço essa pessoa. É o meu vizinho. É minha tia. É a enfermeira que me atendeu meses atrás..” ou “ Já estive num lugar como esse. Foi horrível/ótimo estar ali! ”.
Sobre as personagens: Fernanda, uma jovem assistente social, e Cecília, uma senhora marcada pela vida, se encontraram em suas dores e ausências, ocupando um lugar de necessidade na vida uma da outra. A relação se inicia na ruptura da cegueira da correria do meio urbano, quando Fernanda testemunha e interfere empaticamente na difícil luta que Cecília trava contra seu próprio corpo, idade, saúde, presente e passado.
Um livro de leitura rápida e fácil, que nos faz questionar nossas ações e posicionamentos perante algumas causas humanitárias. Que nos faz refletir a beleza e existência da bondade genuína e que finalmente nos traz conforto depois dos difíceis momentos e caminhos traçados pelas personagens. Uma boa pedida para esses tempos malucos!
Conheça a autora e confira a entrevista que fiz com ela!
SOBRE A AUTORA
"Gizele Marques é carioca, assistente social formada pela UFRJ, ama viajar e andar de bicicleta. Começou a escrever sobre a história de Cecília em 2016, mas foi em seu mochilão pela Europa, dois anos depois, que conseguiu focar e finalizar a escrita. Acredita que só há sentido em viver se for com a consciência de comunidade e cuidado mútuo." Apresentação da autora presente no livro.
ENTREVISTA
1. Como surgiu a ideia do livro?
Primeiramente preciso dizer que o livro foi baseado em fatos. Embora ele esteja na categoria ficção por motivos de segurança, ele é fidedigno ao que aconteceu na realidade. Conforme as coisas iam ocorrendo na vida real, eu e as outras pessoas que estavam vivendo tudo aquilo comigo ou que tinham o conhecimento da história sempre diziam: gente! Isso é coisa de filme! Como não sou roteirista e nem diretora de cinema, me contentei, por hora, com o livro. (risos)
2. Como foi o seu processo de escrita e pesquisa do mesmo?
Levou 4 anos para eu concluir a escrita do livro. Comecei alguns esboços em 2015 mas emocionalmente eu não estava bem para entrar em contato com a história e realizar uma escrita clara, com qualidade. Então engavetei o projeto. Em 2018 fiz um mochilão pela Europa e levei meu netbook. Uma das minhas metas nessa viagem era, além de me desconectar da minha vida no Brasil e ressignificar algumas coisas, concluir a história de Fernanda e Cecília. Foram 3 meses viajando, pesquisando, escrevendo. Quando cheguei no Brasil, 90% do livro já estava pronto. É bem verdade que tive algumas dificuldades no processo, como parar e me concentrar para escrever. Por incrível que pareça minha escrita era péssima. Mas felizmente recebi muita ajuda nesse sentido e sou muitíssimo grata à Giulia, minha amiga e professora de redação, à minha mãe e à minha tia, que releram o livro e fizeram apontamentos significativos para que o texto tivesse a qualidade que tem. Foi um belo trabalho em equipe!
3. Como foi o processo de publicação?
Sou uma autora independente. Primeiro publiquei o e-book pelo Kindle Direct Publishing, em 2019. Em 2020 resolvi fazer o livro físico, pois muitas pessoas do meu convívio ainda preferem o papel. Depois de me decepcionar muito com os preços de editoras, resolvi setorizar os serviços necessários para imprimir um livro. Pedi à um amigo desenhista, o Igor Hiramoto, para fazer a capa. Eu já tinha ideia do que queria, só não sabia colocar no papel. Ele brilhantemente fez exatamente o que eu queria!
Embora eu tenha feito a diagramação pelo KDP, quando o arquivo foi para a gráfica, a impressão não havia ficado boa, então contratei os serviços da Júlia Parente para fazer a diagramação e projeto gráfico, o que deixou o livro bem bonito por dentro também. A ficha catalográfica foi feita por uma colega bibliotecária, a Giovana Sabóia. Quando tudo estava pronto e nos seus devidos lugares, mandei pra gráfica BMP Card e aí foi só alegria!
4. Qual é a sua rotina de escrita?
Infelizmente eu não tenho uma. No momento minha vida está uma correria só e não tenho conseguido priorizar a escrita.
5. Quais são seus próximos projetos?
Atualmente estou participando de um grande projeto de pesquisa do Educafro, que consiste em fazer uma biografia de algum ícone negro/negra da história brasileira. Eu e mais quatro colegas escolhemos falar da Anazir Maria de Oliveira, fundadora do sindicato das domésticas e importante símbolo na luta das mulheres negras e periféricas. Depois de concluir esse projeto, quero escrever uma outra biografia: a da minha avó materna. Ela nasceu no interior do estado do Rio de Janeiro, em 1931 e foi a única de sua família a fazer nível superior. Foi de fato uma mulher à frente do seu tempo.
Minha avó foi uma pessoa com quem convivi bem de perto e com quem aprendi muito. Infelizmente a perdi pro Alzheimer e Parkinson e acredito ser, quase um dever, manter a memória dela através de um livro. Penso que há muito o que mostrar com a história dela, desde o machismo até como uma família lida com a questão de sua matriarca com Alzheimer.
6. Dizem que todo livro é autobiográfico, até em obras de ficção o autor acaba colocando um pouco de si. Lendo o livro e vendo algumas outras falas suas, percebi que há muita semelhança entre você e a personagem Fernanda, até mesmo a profissão. Me fale um pouco sobre essa relação Gizele/Fernanda.
A Fernanda é a Gizele. E que bom que você viu semelhança porque isso mostra que sou uma pessoa coerente! (risos). Posso dizer que Fernanda foi a melhor versão da Gizele até agora.
7. O livro transita pela tênue linha entre justiça e vingança. Tiveram muitos momentos em que eu, na minha liberdade de leitora, idealizei formas de vingança, mas o livro acabou me levando para soluções mais justas. Como foi se colocar nessa linha?
Acredito que ao longo da vida a gente vá entendendo a palavra justiça quase como um sinônimo de vingança. Para mim, foi só a partir da leitura sobre as palavras e vida de Jesus Cristo que comecei a entender justiça e vingança como coisas completamente diferentes. Fernanda ouviu muitos convites (internos e externos) para “fazer justiça com as próprias mãos”, que nada mais é do que vingar-se. E o que eu gosto na Fernanda é que, como ela sabe o que significa justiça, ela aplica o significado correto à palavra e sua ação é certeira. Ela fazia justiça com as próprias mãos cada vez que fazia um carinho em Cecília; com os pés, cada vez que ia até o hospital pra uma visita; com a boca, cada vez que fazia uma denúncia ou falava com alguém mesmo sem saber se aquilo daria em alguma coisa. Para mim justiça é isso: dar ou proporcionar o que falta a algo ou alguém, é uma ação de reparação.
8. O livro também nos traz uma visão muito delicada sobre a possível solidão humana dentro de um contexto familiar, onde o vínculo sanguíneo não é sinônimo de proximidade, amor e carinho. E trazer a figura da Cecília foi uma forma muito real, triste e forte de tratar sobre isso. Como foi a criação da personagem Cecília, que é tão cheia de camadas, dona de uma vida que nos traz certos mistérios e desconhecimentos? E como foi tratar da solidão dessa mulher?
Cecília de fato foi uma mulher misteriosa. A meu ver, ela preferia não falar de sua vida em muitos aspectos como forma de se proteger. A solidão de Cecília foi o que a levou a situação de total vulnerabilidade em que se encontrava. Sozinha, se tornou presa fácil. Em alguns aspectos eu já fui como Cecília. Já preferi muitas vezes estar só, me fechar, e alimentar a ilusão de que assim não iria sofrer. Ao longo da vida aprendi que posso estar aberta às pessoas e mesmo assim não me machucar. Retratar o que a solidão pode acarretar foi importante até mesmo como forma de aviso, especialmente às pessoas idosas que muitas vezes precisam de outras pessoas para fazer tarefas simples do dia a dia.
9. Me senti extremamente encorajada e estimulada pela força das mulheres presente na narrativa. Realmente, foi muito bonito ler os caminhos, escolhas, angústias e união dessas personagens. Como foi criação dessa rede de apoio (não só de Cecília, é preciso deixar claro)?
Eu não consigo imaginar uma aproximação de Cecília se não for através de uma rede. Como assistente social eu entendo que qualquer ação, principalmente as mais complexas, exigem um grupo de pessoas para sua execução. No momento em que Fernanda percebe sua limitação frente a toda aquela difícil realidade ela começa a pedir o apoio de outras pessoas, para se proteger e proteger Cecília. Não por coincidência essa rede foi formada basicamente por mulheres. Digo isso porque na nossa cultura ainda é muito forte o espaço de cuidado ocupado quase que exclusivamente por mulheres, como se isso fosse o natural, inerente a ser mulher. E sabemos que não é verdade. Todos podem cuidar.
10. O final do livro é de uma tristeza que nos consola. Normalmente a gente fica com um sabor amargo quando algum personagem querido morre. Porém, a narrativa presente no livro vai caminhando para um lugar em que a morte não é vista como um final, uma perda inconsolável. A meu ver, foi uma passagem muito tranquila (não que todo o processo anterior o tenha sido) e até mesmo esperada. Até achei muito bonito o relato da colega de quarto contando sobre a visita que Cecília recebeu instantes antes de morrer, essa parte do livro me foi como um abraço. Me fale um pouco sobre esse final.
Em primeiro lugar queria destacar que para mim o final da vida de Cecília não foi o final de sua história. Além de parte de sua vida ter ficado registrada em um livro, acredito em vida após a morte. Cecília foi abraçada, recepcionada e muito bem vinda em outro lugar. O que foi dito pela colega de quarto foi só mais uma evidência de que as histórias de vida não acabam quanto parecem ter terminado. Além do legado que deixamos existe o lugar para onde vamos descansar, onde encontramos Justiça. Essa é a mensagem final. Apesar dos sofrimentos nesta vida, é possível encontrar descanso num porvir que começa aqui. Tem uma música que eu gosto muito que diz que “toda dor é por enquanto” e que a “alegria [é] daqui até o fim e eternamente”. Pensar nisso quando vejo ou passo por algumas situações que parecem não ter fim, como a pandemia, o desgoverno de Bolsonaro, o machismo, o racismo, é como beber um gole de esperança. Me ajuda a acalmar e continuar lutando, porque eu sei que um dia isso vai passar.
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